Que faremos com os mortos? Podem rezar missas aos potes para que as almas deles se salvem, mas eles não querem isso. Eles querem saber de nós – eles nos vigiam. Eles vigiam o nosso reino da terra; foi por esse reino que eles morreram. Estão espantados: querem saber por que morreram, para que morreram.
Rubem Braga
era uma vez um ditado
prudente, que assim dizia:
“aos mortos, flores lhes damos;
mas aos vivos – pão e vinho”.
sabemos que há muitos anos,
porém, não temos mais mortos:
pois eles deitam e ficam;
e nós, sempre, só passamos.
os mortos ficam e jazem
sob uma pedra que é muda.
seguimos o vozerio
e os deixamos para trás.
depois de tanto avançar
e tomar tantos caminhos
não sabemos onde pôr
flores – nem beber do vinho.
os mortos, nalgum lugar,
atrás, perdidos estão.
mas o continente é grande:
perdidos, pois, ficarão.
flores, rimas – são teatro,
feriado de finados.
flores, rimas – são comprados
barato, em qualquer esquina.
mas em seu caixão os mortos
guardam nota promissória,
guardam, notada, uma dívida.
e, talvez, de seu resgate
se queixem, em seu silêncio.
e no seu tempo calado
com suas queixas ressentem
a terra – esse chão dos vivos.
porém não é coisa séria
falar dos mortos, da dívida:
há muito não temos mortos;
flores, coveiros lhes dão.
os mortos são uma farsa.
e não se alarme, leitor,
se eu lhe disser que esta herança
é pobre sonho – invenção.
.bcg.