1.8.11

débito


    Que faremos com os mortos? Podem rezar missas aos potes para que as almas deles se salvem, mas eles não querem isso. Eles querem saber de nós – eles nos vigiam. Eles vigiam o nosso reino da terra; foi por esse reino que eles morreram. Estão espantados: querem saber por que morreram, para que morreram. 
        Rubem Braga



era uma vez um ditado
prudente, que assim dizia:
“aos mortos, flores lhes damos; 
mas aos vivos – pão e vinho”. 


sabemos que há muitos anos, 
porém, não temos mais mortos:
pois eles deitam e ficam; 
e nós, sempre, só passamos. 


os mortos ficam e jazem
sob uma pedra que é muda. 
seguimos o vozerio
e os deixamos para trás. 


depois de tanto avançar
e tomar tantos caminhos
não sabemos onde pôr
flores – nem beber do vinho. 


os mortos, nalgum lugar, 
atrás, perdidos estão. 
mas o continente é grande:
perdidos, pois, ficarão. 


flores, rimas – são teatro, 
feriado de finados. 
flores, rimas – são comprados
barato, em qualquer esquina. 


mas em seu caixão os mortos
guardam nota promissória, 
guardam, notada, uma dívida. 
e, talvez, de seu resgate


se queixem, em seu silêncio. 
e no seu tempo calado
com suas queixas ressentem 
a terra – esse chão dos vivos. 


porém não é coisa séria
falar dos mortos, da dívida:
há muito não temos mortos; 
flores, coveiros lhes dão. 


os mortos são uma farsa. 
e não se alarme, leitor, 
se eu lhe disser que esta herança
é pobre sonho – invenção.



.bcg.