29.11.20

o deus dos demógrafos

(um continho ligeiro antes do próximo poema)



Contam que o reverendo Malthus - sabe-se lá onde anda seu espírito -, por ter esticado os ouvidos de sua inteligência até a empírea sede, conseguiu duas proezas igualmente amargas: tirou as últimas esperanças do pai com apuro matemático e revelou a todos os planos de deus para o futuro da humanidade.

Pois o reverendo, mesmo depois de seu descenso, teria deixado lá uma orelha (insegurança? humano e perverso desejo de confirmação?). Alguns de seus admiradores passaram a espalhar por aí que ele teria recentemente flagrado esse diálogo do Senhor, em plena atividade celeste: 

- Quantos eles são? Como estão os números?

- Ainda na casa dos sete bilhões e se aproximando de oito, Senhor. 

- Mas e as baixas? A pandemia não deu nem um bilhão? 

- Não, Senhor. Foram muitas, mas estamos longe da meta - disse o serafim, meio encabulado. Para não deixar o chefe muito irritado, completou com um sorriso amarelo e atamancado: - Seu trabalho foi muito bom, Senhor! A criação continua até a procriar!

- Se fosse bom, não precisaríamos do Projeto Pandemia - bufou o Senhor, dando maior espalhafato às penas do serafim adulador. 

Coçou a cabeça. 

- Chamem a turma do Projeto Meteoro. 

E, depois de uma rápida consideração nada insondável: 

- E deixem o pessoal do Projeto Apocalipse de prontidão. Quero revisar os escopos. 

Como o leitor já deve saber, um morto não tem pudores ao contar sua vida, quando muito a dos outros; costuma misturar facilmente galhofa e melancolia, porém. Então, sugiro que desconfie do que pode sair de sua boca morta. Principalmente quando não se sabe ao certo onde seu espírito foi acabar seus dias. 



.bcg.